terça-feira, 31 de julho de 2007

Capítulo 1


Ilustrações: A.O.D.P. (clique na imagem para ampliar).

Capítulo 1

Amélia dos Santos

Com as duas mãos quebradas e os pés esfolados de tanto bater na porta do barraco em chamas, começa a dar cabeçadas, joelhadas e arremessar o ombro contra a madeira. A menina franzina mais parecia tentar vencer a tranca com seus gritos agudos direcionados para as correntes da porta, extravasando uma dor mais aguda ainda. As correntes passavam por um buraco na parede e outro na porta improvisada, com um cadeado friamente planejado para evitar escapatórias. As labaredas tomavam cada vez mais força, como outra boca aberta em direção à menina.

Envolta pelo fogo, fumaça preta e os móveis já se despedaçando, Amélia não conseguia achar seus irmãos. Outras quatro crianças que dormiam entre o fogão de duas bocas, a TV de cinco polegadas e debaixo da vela de sete dias. Apesar do único cômodo ser pequeno, era impossível vê-los. O calor já cozinhava suas costas e fervia a sua cabeça, Amélia olhava pra traz e só enxergava mais chamas, mais dentes e mais línguas flamejando em alta temperatura. Agressivas, subiam pelo teto usando um combustível interminável. Uma das poucas coisas que não queimaria seria a corrente na porta. Sem conseguir olhar mais pra sua casa, chorava de raiva, medo e impotência. Ela não conseguia ajudar seus irmãos.

Continuou incessante com os golpes e quando o sangue já era mais visto que a textura da madeira na porta e as dores das feridas e dos ossos fraturados já não eram mais sentidas, abruptamente a madeira se rompeu com golpes de facão. Com o arrastar das correntes pela parede a porta se abriu. Amélia saiu em desespero, com a baforada de ar quente que correu junto com ela, até os braços de algum vizinho.

Além do estalar das paredes do barraco se quebrando e pequenas explosões diversas entre altas e abafadas, sentia o cheiro de plástico e amianto se queimando. Parou de sentir cheiros quando percebeu o de seus próprios cabelos queimados. Parou de ouvir os lamentos e imprecações das vizinhas “Ô meu deus, tem menino lá dentro!” quando tentou com toda sua força e não conseguiu gritar. Até o último sentido em funcionamento interromper-se com a visão de sua casa engolida pelas chamas.

Foi quando Deus lhe apareceu pela primeira vez, jovem, vestindo uma jaleco branco parecido com o do açougueiro, olheiras e um estetoscópio pendurado no pescoço e lhe disse:

– Eita que você iria ficar mais pretinha do que você já é, hein, Amelinha?

E se desconcentrou de risos. A menina parecia que seria servida em algum banquete canibal, coberta por sangue e cinzas, alguns pontos brancos de queimaduras e o suor ainda brilhando em pontos não atingidos. O médico em plantão, sem enfermeiros, com uma cara de dopado, cuidou dos ferimentos da menina, enfaixou alguns cortes, engessou as partes quebradas e cuidou das queimaduras, impressionantemente poucas e de baixo grau, afetando apenas alguns pontos das pernas e costas. A franzina, suja e agora remendada, repousava tranqüila numa maca especial no corredor da emergência, envolta por gesso, ataduras, pomadas e mais bocas, essas de pessoas gemendo, sedentas pelo atendimento divino. Adormecia artificialmente, tentando esquecer os gritos irracionais de seus irmãos menores, que ecoavam entre seus ouvidos contra sua própria vontade.

Já amanhecia e o barraco havia se tornado pó. Manchas pretas de fogo nas paredes dos vizinhos. Uma pequena fumaça singrava por entre as cinzas e um grande público que saía para o trabalho engarrafava os corredores estreitos. Dois policiais averiguavam a situação entre bocejos, dois enfermeiros retiravam os corpos entre resmungos, dois bombeiros encharcavam as cinzas em silêncio, dois repórteres comemoravam discretamente a matéria do dia. Foi quando a vizinha sendo interrogada pelos policiais falou: “... é ela vai trabalhar não sei onde e deixa os menino tudo trancado aí, só volta... Peraí, o moço, olha ela ali ó, Antônia!” Antônia sente o calafrio de ter sido reconhecida, escondida atrás de todos os curiosos em volta da sua ex-casa. O povo alteia a voz e direciona seus olhares para a mãe dos queimados, a raiva se manifesta nas pessoas e Antônia se vê acuada pelos rostos nervosos e instigados ao linchamento. Quando os policias abrem caminho passando pela multidão, a criminosa arranca os saltos dos pés e dispara entre as vielas e barracos. Correu como um cão feroz, pulando filetes de esgoto, pedregulhos e degraus, esbarrando em bicicletas e latas, ouvindo os gritos de “pega a vagabunda assassina!”, sem olhar pra trás em hora nenhuma, sem pensar em mais nada além de correr.

Quando chega ao asfalto e respira a corrente de ar da avenida que limita a favela, sentindo um vômito quase chegar devido ao esforço, Antônia põe as mãos no joelho, ofegante, com gotas de suor pingando por cima das narinas e o seco amargo da boca assustada. Olha para si mesma, vestindo uma saia minúscula delineada pelas dobras da barriga elevada. Agradece as pernas fortes pela fuga com dois tapinhas “quem me pega é coelho!”. Acende um cigarro, se dá conta ao observar o fogo do isqueiro e pára por dois segundos, e sua expressão de orgulho arrogante se desfaz com os músculos da face afrouxando. Imagina o inferno que passaram. Pensa nos filhos pela última vez enquanto viaja num ônibus de volta para o prostíbulo de onde saiu.