sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Capítulo 3

Ilustrações: A.O.D.P. (Clique na imagem para ampliá-la)

Cafifa

O barulho hipnótico do motor já estava mudo e não era mais ouvido no inconsciente. O sol, que nascia, se fincava lateralmente na pele das pessoas. O sono perpetrava o vazio, das janelas do ônibus pra fora, só se via o sol e o céu. Até que o silêncio do dia volta a ser ouvido, quando aparece de supetão, subindo as escadas da porta da frente, um homem aparentando ter entre 25 a 70 anos, com um olho cego e embranquecido pela catarata, alguns dentes pendurados na boca, coberto por panos imundos, poeirentos e enlameados, faixas amarradas nos pés fazendo sapatos. Atacou a tranqüilidade da manhã chacoalhando moedas dentro de um copo de vidro, copo de cachaça, grasnando como um pato acuado:

– Bom dia, senhores passageiro! – E parou por alguns segundos, balançando ainda mais a mão com o copo, contemplando o interior do transporte, passando os olhos amedrontadores sobre cada um.

– Vou interromper a viagem de vocês, fé em deus, meu pai, ajuda aí ó... Quem não tiver trocado eu aceito graúdo mesmo! Hahahahahaha...! – Abrindo a bocarra, expondo a gengiva, chacoalhando o copo e acentuando o tom animalesco de suas palavras.

Passou por cada assento, apoiando as mãos e abraçando as traves de metal pelo corredor, sem parar com as moedas, quase quebrando o vidro com o som agudamente penetrante, tropeçando entre as pernas dos passageiros e deixando escapar uns pebas nas cabeças desatentas ao passar de uma trave para outra. Foi até o fundo e voltou pedindo para os assentos à direita do carro.

Foi então que o barulho do vidro, que praticamente ditava as passadas lentas e cegas do mendigo, cessou com o último estalo das moedas se acomodando umas sobre as outras, e uma não audição do silêncio se libertando e voltando à tona se fez, como se todos destampassem os ouvidos e ouvissem nada, ouvindo o som do motor ao fundo. Antônia olha para a sua esquerda, analisa a imagem da criatura pedinte e fragorosa das coxas a cabeça. Ele não olha para ela, apesar de poder com um dos olhos, simplesmente pára em pé, ao lado da cadeira. Quando Antônia puxou o ar para dizer algum insulto ao semi-velho, este respondeu em tom de profecia barata:

– Tem gente que pensa que é o demônio que tira as coisa. Humpf... Que nada. O demônio é quem mais dá as coisa. Ele quer que as pessoa gostem das coisa. Que as pessoa caia no vício! Quem tira as coisa é deus... Ele que tira. Mas eu não culpo ele não, ele tá certo. Ele tá certo. As coisas dos homens quem dá é o demônio e quem tira... Quem tira é deus!

Terminou seu discurso com a cara amarrada e quase num espasmo em direção á porta, o semi-profeta, semi-homem, sai o mais rápido possível, arremessando seu corpo contra as traves, feito macaco de galho em galho, puxando a corda violentamente com a mesma mão que segurava o copo com as moedas, rasgando novamente o silêncio, como se preparasse a cama para sua voz de estardalhaço:

– Mas eu...! Mas eu, senhores passageiro, to precisando é de um demônio pra mim ajudar!

Rebatendo com sinais de cruz e resmungos, os viajantes observam o profeta pular do ônibus ainda, vagarosamente, em movimento. Foi o suficiente para que perdesse o equilíbrio ao tentar pousar num pé só, indo com a cara, o copo e as moedas todas ao chão, se espalhando pelo asfalto quente e rolando pelo barro seco da calçada, como um pano de chão velho. Antônia, acompanhando pela janela e já olhando pra trás, cai numa gargalhada contagiante e desprendida enquanto se senta novamente arrastando as costas nuas no plástico do assento. Dando novas risadas pelo caminho apenas por lembrar da queda do profeta, o sorriso no rosto permanece até a hora que se levanta para puxar a corda.

Antônia adentra seu local de trabalho, a boate “Terra de Índias”. O ambiente que nunca clareia, tendo a luz do sol enxotada pelos filmes nas portas de vidro e pelos espelhos embaçados de salitre nas paredes. Um mofo denso, quase palpável e pior agora que o ar-condicionado estava desligado. O cheiro de detergente se misturava com o de cerveja derramada e dormida. Uma senhora passa pano no chão, cantarolando solfejos retardados com o radinho de pilha, entre as cadeiras de perna pro ar sobre as mesas:

– Cidinha, cadê Cafifa?

– Tá aí nos fundo. Num entre não que ele tá contando dinheiro, viu?

– Chame ele...

– Faz favor, né?

– To brincando não, sua jéga! Chame ele! Velha fedorenta...

Após alguns minutos e um som de porta velha de madeira batendo, chega Cafifa. O sorriso que o precede enfeita as palavras doces saindo por cima de sua língua afiada “Ô Tonha, minha negona gostosa, vai dormir não, mulher?”. Tira as mãos dela de cima do balcão e leva até a sua boca, num galanteio importado e abrasileirado. Antônia olha para as mãos cheias de anéis e cicatrizes que seguravam as suas:

– Cafifa, to precisando de uma força sua, tá ligado? To aqui lenhada, velho... Minha casa pegou fogo, meus documento, meu dinheiro... To aqui como minha mãe me botou... Me arruma um barraco aí, qualquer lugar tá bom.

– Tonha! Não brinque não, rapaz! E Amelinha?

– Não sei, não quero nem saber daquela diaba, ela deve ter se saído. O problema é que eu to devendo agora, os quatro ficaram, sobreviveram não.

– Se ligue, você tá com sorte hoje, vamo ali comigo.

Gozando de um belo ar-refrigerado, sentadas no banco carona de um gigantesco carro de luxo, “as pernas que ninguém segura”, passeiam pela cidade, bem acomodadas sobre o couro sintético do automóvel. Antônia se admira ao enveredar pelas ruas largas e bem cuidadas de um bairro nobre e arborizado, com prédios requintados, cheios de porteiros, grades e jardins. Cafifa ri, “É mulé, vai morar em bairro bom, sacana! Vai tirar onda”. O sorriso abobalhado se desfaz pouco depois, bastou uma curva fechada e uma ladeira abaixo, para surgir atrás dos prédios de luxo, um mostro formado por barracos em madeira, papelão, remendos e paredes avermelhadas sem reboco. Um buraco, um morro infestado por construções que se assemelhavam a entulho se vistas de longe. “Tonhinha, cê não pensou que... Ah! Habahaha... É aqui mesmo, sai do carro aí”. Antônia, ainda com as pernas frias e metade da bunda exposta, e Cafifa, fatiotado no melhor estilo anos quarenta, descem as escadarias improvisadas da criatura, do núcleo do semi-bairro de semi-luxo. Cafifa olha pro mato, pega um pedaço de cabo de vassoura que estava jogado e continua sua trajetória, se enfiando pelos corredores da “Vilage Residence of Pindaíba” como ele próprio menciona e ri novamente da cara inconformada de Antônia. Os dois param em frente a um barraco tosco como todos os outros:

– É aqui. – Põe o pedaço de madeira encostado ao lado da porta.

– De casa! – Diz Cafifa, batendo palmas.

Uma bela moça com os olhos ainda fechados de sono, pele morena clara e os cabelos artificialmente lisos, vestindo uma camisola vermelha e transparente deixando aparecer os seios fartos e o corpo esguio, abre o sorriso:

– Meu nego! Tudo bom, gatinho?

– Tudo bom minha linda, melhor agora. – Novamente, cortejando com seu galanteio tão tradicional quanto sua roupa, beijando as mãos de unhas gigantescas da moça.

– Entre vá, a casa é sua! – Risos.

– Precisa não, to bem. Só vim lhe perguntar uma coisa, meu amor: Cadê?

A moça, que olhava diretamente para Cafifa com umas das mãos apoiada na porta, desviou com um olhar desolado para baixo... Foi o bastante. Ele fecha a sua mão mais decorada e esmurra o nariz da mulher. A cabeça é arremessada pra trás, sendo seguida por três passos cambaleantes. Ela cai por cima da mesa de plástico derrubando inúmeros frascos de perfumes, maquiagem e bijuterias ao chão de concreto. Os anéis da mão pesada de Cafifa se rompem “Fuleiragem esse anel, na moral!”. Ele pega o pedaço de cabo de vassoura e a partir desse instante todas as suas frases tem como ponto final uma paulada contra as costas da mulher quase inconsciente, caída entre os cacos, tintas e o odor de perfume barato:

– Não...! – Gritou Cafifa no meio da trajetória da paulada.

– Aarrgh! – Gritava a mulher após o som seco da madeira contra sua coluna.

– Pegue...!

– Argh!

– Mais...!

– ...

– Porra nenhuma...!

Quando o vermelho da camisola e na camisola já se tornava opaco e a mulher apenas se contorcia arrastando os frascos e seu corpo pelo chão, Cafifa começa a suar e interrompe seus golpes.

– Pegue uma muda de roupa aí e se saia agora!

Embalada pela sua respiração ofegante de raiva e choro, a moça demorou mais para levantar do que para juntar duas ou três peças de roupa numa bolsa, calçar os saltos e sair sem falar nada, com uma mão segurando um lenço contra o nariz, sai encarando a nova moradora de sua ex-casa. Antônia que assistia a tudo impassível, pega uma vassoura e começa a varrer os cacos pra fora. Cafifa sai do barraco e observa o saco de pancadas vermelho tomar distância. Volta para dentro, bebe um copo d’água, liga a televisão e desliga:

– Olhe, esse telefone aí faz ligação também, qualquer coisa me ligue. Vou cuidar, té mais, Tonha.

Voltando pro seu carro, Cafifa se depara com o pára-brisa em pedaços e a lataria toda riscada com promessas e mensagens de morte escritas.

– Ô miséria! Que mole federal... Essa vagabunda me paga. É bom que eu já sei, próxima vez que tiver isso, eu venho pra cá de busu.