quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Capítulo 4

Ilustrações por: A.O.D.P. (clique na imagem para ampliar).
Trilha sonora para o Capítulo:
"The Widow"
Banda: The Mars Volta
CD: Frances The Mute


Mussurunga Via Mortos Vivos

Num pedaço de papel xerografado pela terceira vez, recortado a tesoura, cheio de dobras, manchas escuras de sangue seco e sujeira de dezenas de mãos: “Olá Amigo (a), sou pai de 12 filho. Tenho uma doença grave e preciso de sua ajuda. O remédio é caro, o doutor é caro. Não consigo emprego, não consigo trabalhar. Qualquer moeda você pode mim dá. Obrigado e Deus te abençoe”. Uma mão totalmente coberta por ataduras, livrando apenas as pontas dos dedos, despeja este papel no colo também enfaixado de Amélia. Ela olha pro rosto do homem, uma vermelhidão intensa cobria as maças do rosto e todo o nariz do pedinte.

– Qual é, vagabundo?! Não tá vendo que a menina nem consegue pegar o papel direito, rapaz! – Responde Agnaldo, devolvendo o papel olhando apenas para sua própria mão.

O homem recebe o papel, sujando-o um pouco mais de sangue, pesando um pouco mais a feição e passando adiante para o próximo par de assentos no transporte.

Um baleiro, que já se encontrava no seu marketing antes do homem, tentou disputar atenção, mas logo desistiu, frente ao grande apelo e eliminador de apetite ao seu lado na concorrência das vendas. Vendeu apenas alguns chocolates antes da entrada do concorrente.

Após passar os pedaços de papel e um pouco de nojo para todos, se posiciona ao palco do final do corredor com a mão direita levantada, segurando as barras de metal, para não cair com as freadas e arrancadas abruptas do motorista. A mancha inflamada, reluzente, vermelha, assada, cheia de sangue por debaixo da pele, retratava logo nas fuças, o sintoma mais aparente de Lupus. Feridas opulentas e necroses se espalhavam por todas as partes visíveis de sua pele, como círculos feito hematomas vermelhos, como raladuras e golpes de facão infeccionados, abraçando suas pernas finas. “... que Pariu... Que nojeira! Ô meu irmão, se pique rapaz!” bradava Agnaldo, levantando do assento e gesticulando de forma ameaçadora.

– Senhores ilustre passageiro. Vocês que sustenta o Brasil, vocês que me sustenta. Lê o recado aí, faz favor. Qualquer dez centavo aí tá bom. – Sua voz só era ouvida até a metade do ônibus, pois o ar ardia em seus pulmões, o abdômen tremia pelo esforço de respirar, a voz saia triste, aguda, fraca e rouca, além de baixa, deixando mais fácil a tarefa de não olhar e não ouvir o que ele dizia.

– Eu to doente, tenho lupu. Doença desgraçada. Preciso comprar os remédio cotircóidi que o doutor passou. – Interrompeu as palavras, puxando um pouco de ar vagarosamente, com a mão sobre o peito – Que o doutor passou... O cotir...

O homem se atira de joelhos ao chão e começa a tremer muito mais que a mão do motorista apoiada sobre o câmbio. Quando levanta a sua cabeça, aterroriza a única pessoa que o olhava, entre os mais de 30, Amélia. Ele arregala os olhos para a menina, mostra raivosamente os dentes tentando puxar o ar, sem conseguir. Só chama a atenção de todos quando se joga por inteiro ao chão, com os braços por cima das costas, a bochecha apoiada no metal e nas marcas de sapato, deixando o rosto torto e desesperado em busca da respiração. Um alvoroço se espalha e todos emitem gritos espalhafatosos, indo de “Pára! Pára!” até “Corre pro hospital Motor!”. Pela mente de Agnaldo, passou a idéia de enxotá-lo do ônibus e continuar o caminho sem mais problemas, porém imaginou que um soco no meio de tantas feridas o infectaria com alguma podridão dentre as centenas que o “parente de zumbi” poderia ter. Ao ver o homem cheio de espasmos ao chão, pensou ser mais fácil a tarefa de arrastá-lo pra fora.

Apesar de contrariar a vontade de Agnaldo e, possivelmente, outros no ambiente, o lobo de si mesmo, caracterizando sua doença auto-imune, continuava a se debater por cima das placas de aço do chão do ônibus, emitindo um som específico, ininterrupto e cada vez mais alto das pancadas do crânio contra o chão.

Tão instantâneo quanto o nascer do sol, com seu reflexo atrasado em 50 anos e com a agilidade supersônica de uma lesma adormecida, o motorista corta a avenida, atravessando todas as faixas com seu monstro de capacidade para 80 pessoas, recebendo disparos de buzinas variadas, cantadas de pneu e palavrões bem gordos e cabeludos. Era uma sonoridade completa, de percussão craniana até corais dissonantes e ofensivos de carros, motoristas e passageiros com o motor velho do ônibus, em alta aceleração, fazendo os sons graves e subgraves. O lobo-zumbi não parava um segundo, preenchendo o cargo de dançarino descontrolado, dessa banda doentia.

O coletivo entra num retorno e corta como uma faca cega o trânsito da outra mão da avenida, já se direcionando a entrada ladeira acima. A toda velocidade possível de toneladas de ferro velho motorizadas, a caravana se dirige ao hospital mais próximo. As janelas e chapas de metal formavam uma bateria frenética e ensurdecedora com o carro pesado, frouxo e cheio de folgas passando violentamente por buracos e quebra molas. Agnaldo assume a cantoria e protesta:

– Isso é um desrespeito Motor! Você “se sai” do caminho de várias pessoas por causa de uma só! Palhaçada rapaz! Larga esse filho de uma ronca-e-fuça aí mesmo! – O motorista continua seu caminho em silêncio, seguindo automaticamente seu instinto e o protocolo da empresa.

– Ele tá morrendo assufocado! – Grita uma senhora suada com a mão na testa, querendo cantar também.

O grito aciona uma lembrança em Amélia, ela se prepara para levantar. Carregando alguns quilos a mais de gesso, ataduras e ossos em recomposição e muitos quilos a menos de nojo em relação aos seus colegas espectadores e passageiros, ela se levanta, se dirige, num pé só, até o corpo estatelado ao chão, trêmulo, porém já sem forças. Ela se ajoelha, vira o homem de barriga pra cima com a ajuda de outra pessoa ao lado. Observa a sua boca cheia de cortes, veias arroxeadas saltando, lábios rachados, barba por fazer, suor e a saliva escorrendo pelo canto, a mancha em forma de borboleta vermelha já perdia sua tonalidade e partia para um roxo estranho. Não fosse o leve ir e vir da goela do lobo, a sua expressão apática e estática de zumbi daria o atestado de óbito. Amélia tampa o nariz do homem, espremendo os poros suados e inflamados, encosta a sua própria boca ferida à boca do homem e começa a respiração artificial. Ela sopra o ar com toda a sua força para dentro dos pulmões da vítima, enchendo as bochechas do homem, espirrando sangue, o suor e a saliva. A mesma pessoa que ajudou a virar o lobo de barriga pra cima, acompanha a cena sem piscar e sente um arrepio estridente pelo corpo, não possui estômago e vomita, escada do ônibus abaixo, pensa ter desperdiçado o doce que acabara de comprar.

Amélia continua sua inútil tentativa, imitando a cena que viu no telejornal, até a porta emporcalhada se abrir e liberarem espaço para o enfermeiro. Este carrega o corpo desfalecido e arremessa-o sobre uma maca. Amélia observa a maca, lembra e deseja que ele consiga ficar nela durante o tempo suficiente para sua cura.

A caravana de enojados abandona o estacionamento do hospital sem saber que, mais tarde, o homem não resistiria ao ataque de seus próprios anticorpos contra seu pulmão.

O carro volta á sua linha normal, os pedaços de papel com a mensagem e o sangue violento do auto-alérgico, são amassados e jogados janela afora.

– Menina, essa sua boca, eu não beijo de jeito nenhum viu! Hahahahaha! – Divertia-se Agnaldo, sentado ao lado, passada a tensão do momento. Ela era a única que ainda segurava a mensagem.

Amélia salta no ponto de ônibus facilmente reconhecido por ser o seu da maioria dos dias. Agnaldo a levanta, segurando cuidadosamente as pernas da menina. Enquanto ele caminhava em direção à sua casa, passando e pulando os mesmos córregos e vielas que Antônia havia passado em fuga, Agnaldo comenta:

– Se preocupe não, Melinha. Agora cê vai morar comigo. Eu, você e Dorilene, a mais nova família do bairro, diga aí? Vai ser filé! – Risos.

Eles param em frente a uma casa em construção, com a mancha preta de fogo contornando o chão das paredes. O terreno foi forçadamente desapropriado algumas horas depois do registro policial sobre o incêndio. Agnaldo morava a uma distância de duas casas apenas.

“Quem é essa Agnaldo?”. Foi a primeira coisa, e já um grito, que saiu da boca de Dorilene ao ver seu marido entrando com uma menina nos braços. Ele parou na porta olhando fixamente para ela, quase zombando do comentário com o sorriso aberto.

– É minha noivinha! Tá vendo o vestido branco não? Tá meio sujinho, mas tem véu na cabeça e tudo, óia!

– Onde você arranjou essa menina, Agnaldo? – Já sem paciência.

– Ô maluca, essa aqui...

– Eu espero que não seja uma cria desgarrada por aí, cafajeste, porque se for, eu mato os dois! – Falou apontando a faca que cortava a carne do almoço.

– Essa aqui é a vizinha, Amélia. Do incêndio que teve semana retrasada. Fui pegar ela lá no Roberto Santos. Ela vai morar com a gente agora.

– Com que dinheiro, seu sacana!? Com que dinheiro você vai botar comida na boca dessa menina? – Esperneava Dorilene, aparentando querer cuspir os dentes junto com as palavras.

Agnaldo, ainda com a menina nos braços, a coloca com seus gessos e ataduras sobre o sofá velho na sala-quarto-cozinha.

– O pai dela era coligado meu, Dori! Relaxe aí, fique fria. Eu não vou deixar a filha do parceiro na rua.

Dorilene se cala e volta para a limpeza da carne, retirando as gorduras e nervos indesejados.

Agnaldo chega por trás dela, agarra o traseiro rechonchudo da mulher e fala baixinho ao seu ouvido:

– Depois que ela ficar boa, você bota ela pra cuidar dessas coisas e a gente cuida de outras coisas, hein? O que acha? Hum?

– Aí sim, vou pensar no seu caso... – Respondeu murmurando, com um sorriso safado no canto da boca, desviando os beijos de Agnaldo em seu pescoço e depois encarando a menina sentada e sujando seu sofá novo.