quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Capítulo 2

Ilustração por: A.O.D.P. (Clique na imagem para ampliar)


Capítulo 2

A Maca-Trincheira

Quatro dias se passaram e o gesso já tomava a cor amarelada das paredes. Além de não poder coçar e suar de agonia por isso, Amélia ainda não conseguia falar. A rara prescrição médica era apenas atribuída aos visivelmente feridos e, principalmente, de maior potência vocal. Sem a voz, ela parecia tranqüila e devidamente medicada. Uma garota vestida apenas de queimaduras, feridas, ataduras e gesso, deitada cruamente numa prancha de metal sem cobertores, era apelo insuficiente em meio a um coro de desesperados com seus cantos dignos de uma câmara de tortura. Era uma multidão de pessoas que suplicava por atendimento e remédios, parentes em fúria ameaçando quebrar as vidraças se o médico não vier, enfermeiros raivosos dando respostas negativas a tudo, doentes se urinando na metade do caminho para o banheiro. Boiando nesse mar feito de pedaços de ataduras e esparadrapos, gritos, gemidos, tosses carregadas, gemidos, risadas sarcásticas, gemidos e sussurros coletivos em reza estava a maca e a menina. Uma enxaqueca pulsante e aguda aumentava quando a coceira por entre o gesso e sua pele emergia e ardia com o suor. Lembrava vagamente de ter comido uma maçã e só. Na sua cabeça e em seus olhos ela urrava de dor, esperneava de choro, mas sua garganta apenas reproduzia o leve som de sua respiração intermitente e suas pernas permaneciam eretas. Poderia morrer ali, poderia ser morta ali, e levaria horas, talvez um dia inteiro para perceberem.

No sexto dia, a presença da única menina numa maca, naquele cenário de guerra, começava a se tornar mais perturbador para o resto dos pacientes que qualquer ferimento. Apesar de estar agüentando dias de dor sem nenhum tipo de analgésico ou remédio para suprimi-la, sua posição em relação aos que estavam no chão era tida como confortável demais. “Ói, essa menina vai sair daí quando? Minha mulher tá querendo se deitar também, meu irmão!”, e Amélia começava a se sentir ameaçada. Virou a cabeça e em resposta obteve todos os olhares do corredor em sua direção, também amarelados como as paredes, assombrosamente invejando o luxo do pedaço de metal sobre rodas, sem lençóis ou travesseiros.

Até que o parente mais revoltado carregou sua esposa e caminhou em direção a maca. Parou ao lado da menina observando um espaço vazio “Você é muito pequena pra ficar sozinha nessa cama, encoste pra lá ai, vá...”, e Amélia não se moveu, apesar de todas as suas forças estarem concentradas e suas veias estourando em direção à perna, tentando liberar espaço para a mulher nos braços do homem. Este se enerva, ainda com a mulher inerte nos braços, deixa sobrar uma mão, apalpa os pés enfaixados de Amélia. Ela grita silenciosamente, apenas com seu pensamento, mas grita para ele não fazer isso... E o homem puxa as pernas da menina para o lado. “Aarrggh!” Um grito agudo de dor explode, reverberando na testa de todos. Amélia extravasa o sofrimento de sua estadia marcial num único som, a poluição sonora do ambiente some e todos percebem agora que a menina consegue falar. Indiferente, o homem ajeita sua mulher no flanco de maca conquistado na batalha, com os olhos quase fechados de tão franzida que estava a sua testa de general raivosa. “Eu te odeio Carlos...” sussurra a esposa com os lábios frouxos, sentada no metal e encostada na parede, “Cala a boca! Aqui tá melhor pra você. Não tá?”, responde o marido impaciente. Ele não pára de balançar freneticamente os joelhos de uma perna, com os dois punhos fincados na beira, fazendo uma cerca em volta do seu território. Olha pro rosto aterrorizado de Amélia, “Relaxe, que daqui a pouco eu tiro essa menina daí”, e olha novamente pra mulher.

Uma outra acompanhante de aparência mais tosca, gorda e baixa, se levanta do chão, ergue o dedo indicador:

– Rapaz, minha mãe tá aqui antes de sua mulher! Quem deveria sentar aí era ela que é uma senhora já!

– Disse bem, baranga, era...

– Baranga não, seu corno! Respeite os doente! Cada um tem que ter sua vez aqui, seu descarado...

E essas foram as últimas frases audíveis e inteligíveis. A poluição sonora volta em peso de orquestra em fúria. O corredor da ala de combate se exalta e até os doentes se estranham e soltam ofensas entre si. A maca abrigava a mulher sonolenta e bêbada por algum tranqüilizante e Amélia estimulada por toda a adrenalina que seu corpo poderia produzir, agora acuada entre os gritos e a parede. Em volta da maca se acumulavam vinte doentes que haviam chegado todos em primeiro e reclamando seu posto. A baranga, em frente ao homem, cessou a discussão quando este falou: “Cê parece uma bola de sebo com cabelo, sua mocréia!”, foi o bastante pra bola de sebo fechar as mãos de lavadeira e arremessar contra o general atingindo-o bem no ouvido. Essa foi a fagulha que faltava e o embate hospitalar se espalhou feito o pior vírus do recinto. Quando começaram a empurrar e balançar a estrutura e agarrar os braços enfaixados da menina, ela se jogou contra a barreira humana, colocando fogo na disputa pela vaga “Saiu, saiu! Venha minha tia!”, “Êpa, se saia”, “Minha mãe! Venha!”. A essa altura a baranga e o parente revoltado já aplicavam tabefes e puxavam orelhas e cabelo. A maca, ainda com a esposa sentada, vai ao chão caindo por cima alguns que estavam sentados ao lado. Uma pancadaria no lugar certo. Os inimigos de Guerra se destacavam bem, cada parente por si e os doentes eram os que nem se moviam entre os socos e pontapés que voavam por cima de suas cabeças. Amélia consegue se desvencilhar da embolação, pulando com o pé não engessado e um olho não enfaixado. A gritaria e a raiva preenchem o corredor, pedestais de soro e pranchetas são usados como armas e qualquer mulher ou criança que puder carregar algum, será necessária na batalha.

O barulho já havia despertado a atenção dos enfermeiros e estes agora apenas observavam a cena com as mãos na cintura, esperando a briga acabar. “Pára! Pára!” gritou uma mulher com a boca cortada e ensangüentada, ela se surpreendeu pois todos obedeceram, coincidentemente, com a chegada da polícia, ou melhor, de um único policial. A esposa, ex-sócia da maca, observa seu marido inconsciente ao chão com um leve sorriso de canto de boca. Os doentes observam a baranga sendo algemada, com os cabelos desgrenhados. Alguns parentes se tornam agora pacientes, o resto dos parentes, já impaciente, retira os seus daquele corredor, campo de concentração.

Amélia fugiu e perdeu o final da Batalha do Soro Fisiológico, agora percorre outros corredores do setor de emergência, observa outras possíveis guerras se iniciando, algumas violentas, como a sua, e a maioria silenciosa. Estas as mais degradantes e desumanas, pois se manifestam onde já não há forças, ao embalo de gemidos e protestos a esmo.

Num pé só, pulando calcanhares dos doentes refestelados pelo chão e ouvindo mais grunhidos e rosnados passando pela atadura que cobria sua orelha, ela chega à sala de espera. Ouviu o som da rua e uma providência divina lhe conduz até a única cadeira vaga. Ela senta, acomodando as partes sãs do glúteo sem encostar as costas na cadeira de plástico. Outra providência, desta vez demoníaca, a conduziu até o campo de visão do seu vizinho, Agnaldo. Ele trocava galanteios com a única atendente no balcão, que o ouvia soltando pequenos risos e embromando o trabalho, concentrada nas palavras floridas do galã. Ainda com o sorriso ensaiado no rosto ele olha pra trás, até reconhecer a menina que acabara de sentar na sua cadeira:

– Ah! Ô minha linda, precisa procurar mais não, – diz pra atendente – olhe ela ali... Amélia!

A menina enfim, soltou as pálpebras e o sorriso. “Oi”, com a doçura de uma princesa mais uma vez salva pelo vizinho.

A moça no balcão checa os dados fornecidos:

– O senhor tem algum documento do paciente?

– Tem não, meu amor... O incêndio levou tudo, sei nem como é que eu vou fazer.

– Foi o senhor que deu entrada não foi? Agnaldo Conceição Barbosa?

– Isso, minha gata – mantendo o tom leve de galã –, Amélia Conceição Barbosa... Minha filha...